Bandeira 4 (ilustrado)


Esse veio daqui


Profundamente
Por Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Bandeira 3 (desta vez, por ele próprio, em áudio e vídeo)


Extraído do documentário de Joaquim Pedro de Andrade, 1959:

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira

Testamento

Manuel Bandeira

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os…
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!… Não foi de jeito…
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde…
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

(29 de janeiro de 1943)


Poesia extraída do livro “Antologia Poética – Manuel Bandeira”, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2001, pág. 126.

O último poema

Manuel Bandeira

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Com esses versos homenageamos o poeta Manuel Bandeira que faleceu em 13/10/1968.

Poema extraído do livro “ Manuel Bandeira — 50 poemas escolhidos pelo autor”, Ed. Cosac Naify – São Paulo, 2006, pág. 35.

Bandeira 2 (para o meu interlocutor)


Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

– O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

Bandeira (para a minha interlocutora)


Santa Clara, clareai

Estes ares

Dai-nos ventos regulares,

de feição.

Estes mares, estes ares

Clareai.

Santa Clara, dai-nos sol.

Se baixar a cerração,

Alumiai

Meus olhos na cerração.

Estes montes e horizontes

Clareai.

Santa Clara, no mau tempo

Sustentai

Nossas asas.

A salvo de árvores, casas,

E penedos, nossas asas

Governai.

Santa Clara, clareai.

Afastai

Todo risco.

Por amor de S. Francisco,

Vosso mestre, nosso pai,

Santa Clara, todo risco

Dissipai.

Santa Clara, clareai

Meus versos favoritos


….quando estou acometida pela TPM (daquela música do Erasure):

I like to read a murder mystery

I like to know the killer isn’t me